Remédio da década de 1920 promete a cura para a esterelidade
e fraqueza senil: era por uma sexualidade cotidiana e disciplinada no seio da
família
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Por Cristiana Facchinetti
As demarcações de diferença anatômica e do comportamento sexual, bem como de suas “patologias” eram um desafio para a ciência da segunda metade do século XIX. O surgimento das teorias da hereditariedade aumentava o temor sobre consequências funestas dos desvios nessa área: além de prejudicar física e moralmente o indivíduo, tais anomalias afetariam seus descendentes diretos e, por extensão, ameaçariam o organismo de toda a nação pelo risco de degeneração social.
No Brasil, como na Europa, políticas estatais e científicas
se articulavam para estabelecer o controle e a regulação moral dos indivíduos,
especialmente no que se refere à saúde e à reprodução da população. Entre nós,
porém, havia um obstáculo em especial: a questão racial. Especialmente após a
Abolição (1888), a miscigenação tornou-se um tema crucial nos debates
científicos. Mais do que a raça negra – considerada primitiva, mas pura – era a
mistura racial que, pensava-se, produzia a degeneração. A medicina do período
definia a população brasileira como um coletivo de indivíduos mestiços e
desequilibrados, de agir impulsivo, instintivo e irracional, incapazes de se
submeterem a uma organização política mais evoluída.
Novas especialidades médicas ganharam impulso. Entre elas, a
medicina mental, que também sublinhava as “mazelas de nosso laboratórioétnico”,
como escreveu o médico Renato Kehl. Esse clima de pessimismo científico era
embalado, ainda, pelo crescimento desordenado das cidades, pelas greves e os
movimentos urbanos.
No início do século XX, as descobertas da microbiologia
adicionaram uma perspectiva social ao “diagnóstico” do brasileiro. Ele se
definia, agora, pela falta de saúde e de educação. Além das teorias da
hereditariedade, passaram a ser consideradas as influências do meio para as
degenerações psicológicas e físicas.
Um símbolo dessa mudança de pensamento é o personagem Jeca
Tatu, criado por Monteiro Lobato. Nas crônicas “Uma velha praga”, publicadas no
jornal O Estado de São Paulo em janeiro de 1914, o escritor explicita o caráter
degenerado do mestiço: o caboclo Jeca Tatu é o “funesto parasita da terra”,
descrito como “baldio, seminômade, inadaptável à civilização”, “fronteiriço,
mudo e sorna [fingido]”. Em dezembro do mesmo ano, no mesmo jornal, Monteiro
Lobato publica Urupês e recupera a imagem do personagem. Desta vez, descreve
Jeca Tatu como um doente, vítima da miséria e da indigência. “Jeca não é assim:
está assim”, ou seja, é passível de regeneração por meio do saneamento e da
educação.
A combinação entre o biológico e o social também repercutiu
nos estudos da sexualidade. A medicina mental dedicava-se à trama sexual dos
impulsos, considerando não apenas a hereditariedade, mas também os
comportamentos sociais e as características físicas e psíquicas dos indivíduos.
Por um lado, o ser humano era visto como “um cabide de glândulas”, na expressão
de Renato Kehl. Equilibrar suas secreções, os hormônios, era garantia da “plena
posse de seu personalismo”, e bastaria uma única glândula funcionar “mais ou
menos mal para surgirem os fenômenos nervosos”. Por outro lado, a “fisionomia”
mental e moral do indivíduo também seria condicionada pelo meio. Daí a
importância da educação para a construção das identidades. Mesmo o instinto
sexual, o mais irremediável dos instintos, poderia ser educado.
Para garantir a transformação da “raça brasileira”,
frequentemente reconhecida como vítima dos impulsos instintivos e da
sensualidade excessiva, a medicina mental, por meio da Liga Brasileira de
Higiene Mental, fundada em 1923 pelo psiquiatra Gustavo Riedel (1887-1934),
organizou um projeto de educação sexual que se propunha a ensinar “a
reprodução, a verdadeira significação do casamento, o combate às doenças
venéreas, o problema da prostituição, a higiene social etc.”. Educar
significava equilibrar os impulsos: imprimir uma conduta que impedisse tanto o
excesso quanto a continência sexual. A peça-chave para essa regulação era o
casamento programado por critérios científicos. Ao domesticar os instintos
desenfreados por meio de uma sexualidade rotineira e controlada no interior da
família, o matrimônio moldaria cidadãos republicanos exemplares: a “esposa-mãe”
(“o tipo completo da mulher normal”) e o homem varonil, capaz de sublimar
parcialmente seus instintos deslocando-os para o trabalho e para o sustento da família,
sua principal função social. Além disso, as escolhas conjugais que contassem
com a ajuda de exames pré-nupciais e conselhos médicos proporcionariam uma
melhoria substancial da nação, produzindo proles sadias.
Mas esse combate ao imaginário hipersexual da brasilidade
nasceu ameaçado. No período do entreguerras (1918-1939), em meio às
transformações das grandes cidades brasileiras, a normalidade, longe de estar
garantida pela ciência, se tornaria cada vez mais instável.
Enquanto a medicina recomendava às mulheres a maternidade e
o cuidado das proles, as “boas moças de família” começavam a ter acesso ao
estudo e ao trabalho fora de casa, ganhavam o espaço público, circulavam em
festas, lojas e teatros, liam romances, iam aos cinemas. Embora ainda não
hegemônica, crescia a recusa ao casamento e à maternidade, e também a aquisição
de hábitos considerados virilizantes, como o uso de calças, o corte dos cabelos
à la garçonne (curto, como de homens) e o hábito de fumar. Cada vez mais se
exigia o fim da exclusividade da dona de casa, especialmente na classe média. A
utopia médica era arruinada pelo “excesso de intelectualização” feminina, que daria
“recursos ao egoísmo, diversão do espírito, orgulho sem limites, malevolência,
falta de compreensão completa dos deveres sociais”, como está descrito nos
Archivos Brasileiros de Psychiatria Neurologia e Sciencias Affins, de 1906.
Como bem definiu Maria Bernadete Ramos, eram as “novas Evas reivindicando
democracia sexual”.
No campo da sexualidade masculina, a proliferação da
sífilis, desencadeadora de doença mental, denunciava a continuidade dos
excessos venéreos na população, limitando o alcance dos projetos de futuro.
Novos comportamentos na cidade moderna também se contrapunham ao modelo
masculino provedor. Personagens marginais, mas de grande repercussão pública,
como João do Rio, Lima Barreto e Oswald de Andrade, são testemunhos seguros –
tanto em sua obra quanto em seu estilo de vida – de costumes pouco adequados ao
ideal do trabalhador casado. Pululam na literatura da época tipos que reafirmam
as “sexualidades interditadas” pelos médicos, como anotou Julio Pires
Porto-Carrero: celibatários, libertinos, polígamos, desquitados, uranistas
(homossexuais) e “toda a turma de personalidades psicopáticas” que, apesar de
seu “grau intelectual alto”, teria “incapacidade acentuada para adaptar-se à
norma”.
No conto “História de gente alegre” (1910), de João do Rio,
mulheres “unissexuais” se perdem nos excessos da noite, protagonizando cenas de
entrega aos seus desejos em público, regados à morfina. Lima Barreto, na
crônica “No ajuste de contas”, de 1918, cobrava das feministas burguesas e
conservadoras que se colocassem contra o casamento, “que tende a se perpetuar
entre nós, aviltando a mulher, rebaixando-a ao estado social da barbárie
medieval, de quase escrava; degradando-a à condição de cousa, de animal
doméstico, de propriedade nas mãos dos maridos...; não lhe respeitando a
consciência e liberdade de amar a quem lhe parecer melhor, quando e onde
quiser; contra tão desgraçada situação da nossa mulher casada, edificada com
estupidez burguesa e a superstição religiosa, não se insurgem as borra-bostas
feministas que há por aí”. Oswald de Andrade, por sua vez, brada em Serafim
Ponte Grande (1933) contra a hipocrisia da sociedade, e são múltiplas as suas
menções a questões sexuais, relacionamentos fora do casamento e experiências
homossexuais.
Fonte: Revista de História
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